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Com inicio
junto ao parque das Salgadeiras (N40
20.273 - W7 36.946), seguimos em direção
ao Cume, passando pelos barros vermelhos
com destino à Lagoa comprida. Chegando à
lagoa comprida contornámos a mesma pela
esquerda onde fizemos uma visita ao
túnel da Lagoa dos Conchos e do Covão do
Meio. Para quem ainda não sabe, na lagoa
comprida desaguam dois Túneis: o do
Covão do Meio, com 2354 metros que
desvia a água das encostas da Torre, e o
do Covão dos Conchos com 1519 metros que
desvia as águas da Ribeira das Naves.
Após visita a estes locais seguimos para
a lindíssima Lagoa Escura. O Objetivo
principal desta caminhada era sem dúvida
a Lagoa Escura, lembro-me há uns anos
atrás ler uma lenda sobre esta Lagoa, e
desde essa altura que ficou prometida
uma visita. Após pequena paragem na
lagoa Escura seguimos em direção ao
“paredão” da Lagoa Comprida usando as
mariolas existentes, o que nos facilitou
na escolha do melhor caminho a seguir.
LENDA DA LAGOA ESCURA
"Quando em 1881 chegou à Serra da
Estrela a expedição científica incumbida
de fazer a sondagem da lagoa Escura para
lhe determinar a profundidade, enorme
alvoroço se apossou dos pastores da
região.
Um vento fresco punha em desordem os
cabelos do jovem cientista. Mas estava
demasiadamente entregue ao seu trabalho
para se preocupar com o penteado. De
súbito, um desconhecido, que até ali se
conservara em silêncio, gritou-lhe,
aflito:
— Senhor! Não deveis pôr isso dentro da
lagoa!
O homem voltou-se. Viu o jovem pastor
com expressão temerosa. Sorriu-lhe e
explicou:
— Isto que vês é um bote de lona.
— E para que o meteis na água?
— Para medir a altura do fundo.
— Mas a lagoa não tem fundo, meu senhor!
O cientista olhou-o com ar de troça.
— Não tem fundo a lagoa? Quem inventou
semelhante disparate?
Ingenuamente, o pastor declarou:
— Foi o meu pai quem mo disse. E foi meu
avô quem o disse ao meu pai!
E quem contou isso ao teu avô?
— O meu bisavô.
— Claro! Foram os teus avós e bisavós
que inventaram tudo isso!
O pastor insistiu:
— Não inventámos nada, meu senhor.
Quando há tempestades, aparecem aqui
monstros vindos do mar!
O cientista desatou a rir. Encarou o
jovem pastor e tentou convencê-lo.
— Olha, homem: tudo isso que me contas
são histórias! Tudo histórias! Não
existem monstros, nem a lagoa está
ligada ao mar!
As feições do pastor tornaram-se mais
duras.
— Quereis saber mais que os antigos? Eu
já vi bocados de navios engolidos pelos
mares a boiarem aqui, nesta lagoa!
O jovem cientista franziu as
sobrancelhas.
— Já viste? Tens a certeza?
— Tenho, sim! Vi-os aqui, com estes
olhos que Deus me deu! Foi num dia de
tempestade…
O cientista meneou a cabeça.
— O que faz a crença! Até vêem o que não
existe!
O pastor empertigou-se.
— Juro que vi!
O seu interlocutor olhou-o bem nos
olhos; e sentindo que era forte demais a
convicção do pastor para a rebater com
palavras, resolveu ser mais concreto.
— Ouve? Amanhã virei aqui tomar banho.
O pastor olhou-o como se estivesse na
presença de um louco. E gritou quase:
— Morrereis, senhor! O monstro
chavelhudo virá agarrar-vos, levando-vos
para o fundo do mar! Depois… talvez
encontrareis a moura encantada!
O cientista voltou a sorrir.
— A moura? Qual moura?
— A que a fada da Serra levou para o
mar, roubando-a aos Lusitanos!
O jovem cientista mostrou-se
interessado.
— Conta lá essa história.
— Não sei mais nada, senhor. Só sei que
ela queria casar com um cristão. Mas
mataram o homem, e a ela levaram-na por
esta lagoa dentro.
O cientista achou melhor não contrariar
opinião tão segura; retorquiu apenas,
fingindo um ar contristado:
— Pobre moura! Nunca mais sairá, então,
do fundo do mar?
— Sim, meu senhor. E que Deus nos livre
disso!
— Porquê?
— Porque a moura só será desencantada
quando um guerreiro da sua raça e da sua
fé tenha a coragem de vir libertá-la. E
nós não queremos mouros por aqui!
— Nesse caso… a moura ficará para sempre
no fundo do mar.
— Assim penso, meu senhor. E agora vou
ao meu trabalho. Fique com Deus!
O cientista acenou com a mão ao pastor,
e ficou-se a olhá-lo enquanto ele se
afastava.
Começava o Sol a descer no horizonte e
já os pastores se retiravam com o gado,
a caminho dos abrigos. A serra parecia
envolvida por luminosidade estranha.
Ouvia-se ao longe o tilintar dos
chocalhos, quebrando o silêncio.
Coberto com o seu amplo capote, pois
começava a esfriar, o jovem cientista
ficara pensativo, olhando uma vez mais a
sumptuosa e bela lagoa Escura. O que
ouvira da boca de um pastor à hora da
merenda fazia-o sorrir. Meditava na
ingenuidade dessa gente, tão sã de corpo
como de alma.
De súbito, uma erva seca estalou no
chão. Ergueu o olhar e viu uma bonita
rapariga de expressão amedrontada,
caminhando a medo para a lagoa. O seu
olhar de brilho intenso estava pousado
nas águas, a que o cair da tarde dava
aspecto ainda mais sombrio. Tão
embevecida estava, que nem reparou na
presença de mais alguém. Os seus lábios
carnudos e sadios murmuraram, de leve,
uma espécie de oração bastante estranha.
Levantou o olhar ao céu. Só então
descobriu que não estava só. A sua
expressão mudou. Não conseguiu abafar um
grito. E dispunha-se a fugir, quando o
cientista a agarrou pela manga da blusa.
— Sossega! Não te faço mal! Não precisas
fugir! Vinhas em busca da moura
encantada?
Os olhos da rapariga fixaram o jovem
desconhecido. Havia medo no seu olhar.
Ele voltou a falar-lhe, sorrindo quase
com ternura:
— Tens medo de mim?… Porquê? Não te
quero mal.
A jovem pastora tremia. E perguntou:
— Acaso sereis… o tal guerreiro mouro?
Sorriu mais o jovem cientista.
— Quem? Aquele que há-de vir desencantar
a princesa moura?… Não, não sou… nem
creio que ele chegue a vir.
Sempre a medo, ela interrogou de novo:
— Então… quem sois? Vindes de longe?
— Sim, venho de longe. Faço parte da
expedição que chegou ontem, e vimos
trabalhar aqui, na lagoa Escura!
O medo da rapariga deu lugar à
estupefacção.
— Trabalhar aqui? Como? Os monstros não
vão deixar!
— É o que tu pensas. Mas eu não acredito
em monstros, nem em mouras, nem em
lagoas sem fundo. São tudo histórias de
lareira.
Afligiu-se, de novo, a jovem pastora:
— Virgem Nossa Senhora! Porque
desdenhais os nossos antigos?
— Porque isso é tudo fantasia.
— Tudo quê?
— Ora!… Tudo coisas que se dizem.
A pastora olhou-o por uns instantes, sem
responder. Depois dispôs-se a voltar
para casa, não fossem os espíritos
persegui-la.
— Com vossa licença vou-me andando, que
se está a fazer noite…
Ele voltou a segurá-la.
— Espera um pouco e diz-me: que vieste
aqui fazer sozinha? Eu sei que vocês
procuram sempre outro caminho.
A jovem pastora mostrou-se embaraçada.
— Foi mal pensado, foi. Mas dizem que a
rapariga que vier aqui sozinha ao pôr do
Sol pedir à moura que lhe encaminhe bem
os seus amores é atendida. Por isso eu
vim…
O cientista abanou a cabeça.
— Oh, cachopa! Porque razão hão-de fazer
preces à moura?
— Porque ela também amou e sofreu por um
lusitano cristão. Ela quis ser cristã.
Devia ser dos nossos. Era muito boa e
muito linda. Mas a fada má encantou-a,
levando-a para o fundo do mar, por esta
lagoa!
O jovem cientista deixou cair os braços,
num desalento.
— E vá lá a gente dizer que isso não é
assim!… Olha, pequena: que dirias, se me
visses amanhã, à hora da merenda, tomar
banho nesta lagoa?
Ela recuou como se tivesse visto um
fantasma. A sua voz tremeu.
— Não façais isso, senhor! A menos… que
sejais o tal guerreiro mouro…
E olhava-o, de olhos esbugalhados. Ele
sorriu.
— Que ideia a tua! Não vês que não sou
nenhum fantasma? Olha! Amanhã vamos pôr
ali um barco e remexer as águas. Vem, e
trás companhia. Hás-de gostar de ver.
— Não! Não quero ver morrer ninguém!
— Não morrerei, garanto-te.
E sorrindo-lhe mais:
— Como és bonita, com esse olhar de
pavor! Um olhar que só pode igualar o
das mouras encantadas.
Foi o suficiente para a rapariga se
libertar das mãos do jovem cientista e
correr serra abaixo, dizendo:
— É ele! É o guerreiro mouro! Que Deus
me valha!
Parecia uma avezita tonta, a pobre moça!
O homem ficou a contemplá-la. E pensava
como seria bom possuir o amor de uma
mulher tão infantil, tão diferente das
outras da cidade!
Lentamente, começou também a descer a
serra. O Sol parecia acompanhá-lo nesse
ocaso. Mas o pensamento do cientista
continuava lá, na lagoa Escura, tentando
imaginar qual seria a reacção dos
pastores quando, no dia seguinte, a
caravana dos cientistas e trabalhadores
tomasse de assalto essa lagoa rodeada de
silêncio e mistério.
O Sol estava a pino, pondo reflexos
dourados em tudo quanto tocava. Na lagoa
Escura a azáfama era grande. Lançavam o
bote a àgua, perante o pasmo de alguns
pastores que os observavam. O jovem
cientista olhou em volta. Procurava os
seus dois conhecidos da véspera. Acabou
por descobri-los. Eram eles o pastor com
quem estivera a falar e a jovem pastora
que tanto se assustara ao tomá-lo pelo
fantasma do guerreiro mouro. Vendo-se
descoberta, ela escondeu-se. Mas o jovem
cientista chamou o pastor.
— Eh, tu! Anda cá!
O pastor hesitou.
— É a mim que chamais?
— Sim, tu! Aproxima-te!
O serrano aproximou-se.
— Deus o salve, senhor!
O cientista bateu-lhe amigavelmente num
ombro:
— Então? Que dizes a isto? Ainda não
apareceram monstros chavelhudos, como tu
disseste…
— Por enquanto não, meu senhor…
— Pois vou despir o casaco e deitar-me à
água, tal como prometi!
— Cuidado, senhor!
Ele riu. Procurou de novo com o olhar a
jovem pastora. Ela fitava-o, espavorida,
procurando esconder-se.
— Eh, cachopa! Não te escondas, que bem
te vejo! Olha, vou ver se encontro a tua
moura…
De um salto, o jovem cientista entrou
pela água da lagoa. Um grito uníssono
saiu da boca da assistência. Alguém
comentou:
— Mas ele deitou-se mesmo à água!
Outro opinou, aflito:
— Vai aparecer o monstro! É melhor
fugirmos!
A debandada começou. Mas alguns serranos
deixaram-se ficar, como colados ao chão.
Entre eles, o pastor e a pastora com
quem o cientista havia conversado.
O jovem nadava, olhando-os, prazenteiro,
triunfante. Bradou-lhes:
— Como vêem, não há monstros na lagoa!
Andem daí, rapazes! Venham ver como falo
verdade!
Alguns recuaram. Mas o Zé Branco, um
pastor jovem com ar desempenado, saiu do
grupo.
— Raios me partam, se não vou também!
Uma voz feminina gritou, aflita:
— Zé, não vás! A ele não lhe acontece
mal porque é o guerreiro da moura!
O cientista compreendeu que esse jovem
pastor era o namorado da pastora com
quem falara. E incitou-o:
— Vamos! Mostra que és homem!
Ela gritou, de novo:
— Não vás, Zé, que morres na lagoa!
O jovem pastor encheu-se de brios.
— Não vou, porquê? Sou homem como ele! E
mais sabido do que vocês todos! Estive
no Porto, quando cachopo, e lá aprendi a
nadar. Conheço o mar e os seus abismos!
O cientista animou-o.
— Isso é que é falar! Vem daí, que já
estou a arrefecer!
Zé Branco despiu o casacão, tirou as
botas e atirou-se a água. Porém, mal
entrou nela, fez-se muito pálido. Voltou
os olhos para terra. Abriu a boca sem
poder falar. E deixava-se ir para o
fundo da lagoa, se o cientista não lhe
tivesse jogado a mão. Trouxe-o logo para
terra, transido de pavor. Os outros
homens persignavam-se. A jovem pastora
chorava. Acercaram-se dele. Um deles
perguntou:
— Que te aconteceu, Zé Branco?
Tentando alinhar as frases, o pastor
respondeu:
— Puxaram-me! Senti que me puxaram para
o fundo!
Todos fizeram um sinal afirmativo com a
cabeça. O que diziam os seus avós estava
confirmado! E por mais que o jovem
cientista tentasse explicar que o puxão
que ele julgava sentir não fora mais que
a pressão feita pelo próprio fato por se
ter prendido em qualquer planta
aquática, eles não acreditavam. Olhavam
o homem que viera de longe profanar as
águas da lagoa como um verdadeiro
fantasma. E a jovem serrana, antes de
descer a serra de volta a casa com o Zé
Branco, rogou ao cientista:
— Se falais com a moura… dizei-lhe que
me faça o que lhe pedi!
Sorriu-lhe o jovem. Não havia outro
remédio. A tradição era mais forte que
tudo no mundo. Mais forte que a
realidade!
Ficou a olhar o grupo que se afastava,
deixando-o como fantasma perdido. E ao
ficar só — pois os seus companheiros
haviam também começado a debandar — o
cientista olhou de novo a lagoa Escura.
E pensou na moura encantada e no
guerreiro lusitano por quem se havia
apaixonado.
Como era bela e poética a imaginação do
povo! Como era forte a sua crença! Tão
forte, que ainda hoje esta lenda
subsiste.
**Fonte Bibliográfica: MARQUES, Gentil
“Lendas de Portugal”, Lisboa, Círculo de
Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III,
pp. 135-140"
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